quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Repressão é pouco: Humanizar as cidades e torná-las mais dinâmicas facilita o trabalho das polícias, dizem especialistas em segurança

Cápsulas de balas na favela da Maré, no Rio de Janeiro

"O Brasil prende muito e prende mal.” A afirmação deixou calada a plateia de convidados e especialistas reunidos no Recife para mais um evento da série Diálogos Capitais – Metrópoles Brasileiras sobre políticas de segurança e bem-estar social. O desabafo partiu de José Luiz Ratton, idealizador de um dos mais bem-sucedidos projetos de redução da violência no Brasil, o Pacto pela Vida, que derrubou os indicadores criminais em Pernambuco e, em especial, na capital do estado.

O programa Pacto pela Vida, estruturado pelo governo estadual na gestão de Eduardo Campos, conseguiu reduzir os indicadores de violência em 40% no interior e em 60% no Recife, o que significa, respectivamente, 34 e 28 homicídios para cada 100 mil habitantes. Convidado para a abertura do evento, o prefeito da capital, Geraldo Julio, disse que não se pode mais imaginar que as questões de segurança podem ser deixadas apenas a cargo dos governos estaduais. “É preciso a participação das prefeituras, o envolvimento dos prefeitos, para construir as bases de uma sociedade onde o bem-estar se sobreponha à insegurança.”

Segundo Julio, a violência não se combate mais da forma antiga, com meros investimentos em mais repressão e inteligência policial. Rever o planejamento urbano e estimular os moradores a ocupar as ruas, a torná-las espaços dinâmicos, públicos, de convívio saudável, é tão importante quanto equipar as forças de segurança. “Os cidadãos escondem-se atrás dos muros altos e nos condomínios fechados. A rua virou espaço do crime. Essa lógica não se sustenta mais. Não podemos mais ter áreas de usos exclusivos, como um centro de escritórios que fica abandonado à noite ou bairros residenciais que passam o dia vazios.”

A mesa de debates, que se seguiu à apresentação do prefeito do Recife, reuniu Elkin Velásquez, diretor-regional do ONU-Habitat, José Luiz Ratton, sociólogo e idealizador do Programa Pacto pela Vida, e Cesar Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará e ex-diretor da Academia de Polícia daquele estado. A falta de coordenação entre os principais agentes da segurança pública e o despreparo no enfrentamento dos problemas foram dois dos principais obstáculos apontados pelos debatedores. Para eles, é muito simplista a forma reducionista como os problemas relacionados à violência são tratados.

“Não é uma questão de número de polícias, mas da falta de integração entre elas”, afirmou Barreira. “Quando um inquérito chega a ser instaurado, surgem os problemas estruturais para levar um preso a julgamento. Há entraves nos institutos médicos legais e na forma como os processos são conduzidos.” O pesquisador acrescenta: “Na audiência de instrução, todos os envolvidos precisam estar presentes. Se falta uma testemunha, o processo vai para o fim da fila”.

O Brasil, com 29 homicídios para cada 100 mil habitantes, não é o único país da América Latina a apresentar altos indicadores de violência. A situação é mais ou menos generalizada tanto na quantidade de crimes quanto na incapacidade das autoridades em solucioná-los e levar os autores à Justiça. Dados da Organização das Nações Unidas apontam: a taxa de homicídios por 100 mil habitantes na região vai de 90 em Honduras a entre 5 e 6 no Uruguai e na Argentina.

De acordo com Velásquez, a segurança é um problema central na sub-região. Colombiano nascido em Medellín, conhecida pela violência extrema nos anos 1980, Velásquez assistiu de perto aos resultados das ações que fizeram cair de 400 para 30 o número de homicídios a cada 100 mil habitantes, principalmente a partir de ações de integração urbana e oferta de serviços públicos. “As cidades de nossa região se desenvolveram produzindo segregação e precisam de planejamento para sair desse cenário.” O especialista da ONU reconhece que as intervenções de reestruturação e adensamento urbano custam caro, mas aponta como necessárias se quisermos cidades mais inteligentes e capazes de oferecer melhores serviços e qualidade de vida aos seus habitantes.

Ratton listou diversas falhas estruturais na forma como a questão da violência é enfrentada no Brasil. A segregação e o preconceito, afirmou, levaram à produção de criminosos e vítimas entre jovens negros pobres e moradores de periferias mal atendidas pelo Estado. “Coincidentemente, esse é também o perfil majoritário das cadeias e penitenciárias brasileiras.” Existe uma dicotomia entre a percepção de impunidade que a sociedade tem em relação à violência e a realidade das cadeias superlotadas. Por isso, insiste o sociólogo, “prende-se muito e prende-se muito mal” no País. “Grande parte dos presos é de jovens sem histórico de violência que acabam atrás das grades por intermediar a venda de drogas.” Ratton defendeu uma revisão das políticas de combate ao tráfico de drogas. “Perdemos essa guerra.” Para ele, é necessário mudar completamente o enfoque, a exemplo do Uruguai e de diversos estados norte-americanos. “Não podemos ter todo o aparato policial focado nas drogas e incapaz de solucionar os crimes violentos que abalam a sociedade e as famílias, que muitas vezes também têm relação com o controle de territórios por parte do tráfico.” Entre as ações sugeridas está a adoção de mecanismos de prevenção de vitimização de grupos específicos, como mulheres, jovens e comunidades LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais).

A integração entre os principais agentes na área de segurança é um dos pontos mais destacados por todos os participantes do debate. Mas a unificação das polícias ou a redução da maioridade penal não seriam, disseram os participantes, panaceias para os males da violência. Cesar Barreira, com experiência na formação de policiais, explica ser necessária a construção de pontes entre as diversas forças para o trabalho de policiamento e investigação se tornar mais efetivo. “É preciso valorizar os policiais e dar a eles uma quadro institucional mais claro.” Isso significa, principalmente, formular ações para resgatar a autoestima dos profissionais que atuam nas polícias, inclusive nas guardas municipais, que não devem desempenhar o mero papel de vigias patrimoniais, mas sim profissionais preparados para manter a integridade da população.

Existem falsos dilemas, disse Barreira, nos debates sobre segurança pública. Alguns deles são a redução da maioridade penal ou a aplicação da pena de morte, que, segundo o especialista, não teriam nenhum impacto real sobre o quadro institucional da violência. “É preciso mudar o foco, não podemos mais ficar atrás de pequenos traficantes, enquanto os crimes que afetam as famílias ficam impunes por uma desorganização institucional que não atinge apenas as polícias, mas toda a forma como as instituições de Estado atuam.” Outro ponto importante destacado pelos três debatedores é o fato de a coexistência de duas ou mais corporações com funções na área de segurança e policiamento não ser um obstáculo para a qualidade do trabalho. “Na maior parte dos países do mundo existe mais de uma força policial”, disse Ratton. “Esse é um debate inócuo, pois as polícias militares têm muita força no Congresso.”

Um dado pouco explorado nas discussões relacionadas à segurança pública é o impacto dos números e a sensação de insegurança em determinadas cidades ou regiões sobre a capacidade de desenvolvimento econômico naqueles territórios. Existe a percepção de queda nos investimentos em áreas de enfrentamento militar, mas poucos são os dados sobre locais que não estão em zona de conflito, mas apresentam indicadores muito acima da média. O diálogo mostrou que os meios de comunicação têm um papel importante em espalhar a sensação de insegurança, muitas vezes por estimular temores maiores do que a realidade recomenda. Por isso a importância de dar voz aos especialistas e não apenas aos comentaristas da mídia.

Um alerta de Ratton: o próximo presidente precisará assumir papel protagonista nas questões relacionadas à segurança pública em todo o País. Não basta ter uma “força de segurança”. É preciso agir para melhorar a qualidade e a efetividade dos sistemas estaduais.


*Colaborou Dal Marcondes.

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/

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