Multiplicidade de projetos voltados para a geração de um conhecimento científico mais livre, colaborativo e sustentável mostra as alternativas que a tecnologia oferece à prática científica nesse início de novo século.
Por: Marcelo Garcia
Acesso livre aos dados e resultados. Emprego de softwares e hardwares livres e abertos. Valorização do conhecimento colaborativo e daquele gerado em países periféricos e com a participação da sociedade. Estes são alguns dos principais eixos sob o guarda-chuva moderno da ciência aberta (open science), vertentes de uma discussão que vem ganhando corpo na comunidade científica, impulsionada em especial pela presença cada vez mais intensa da tecnologia no cotidiano e seu impacto sobre a prática científica. Os múltiplos caminhos desse movimento têm se concretizado em uma ampla variedade de projetos, alguns dos quais foram discutidos no evento ‘Ciência aberta, questões abertas’, realizado no fim de agosto no Rio de Janeiro.
Na área do compartilhamento e produção colaborativa do conhecimento científico, por exemplo, desde a década de 1990 muitas iniciativas têm surgido ao redor do mundo. Repositórios como o PubMed Central e o arXiv, jornais de acesso aberto como o BioMed Central e o Public Library of Science (PLoS), além de bancos de dados abertos como o GenBank, o Protein Data Bank e o Global Biodiversity Information Facility, são bons exemplos. Há, ainda, iniciativas que propõem novas formas de publicação, revisão e validação dos artigos científicos, como o ResearchGate e o Peerage of Science.
Durante o evento, Alessandro Delfanti, pesquisador da Universidade McGill (Canadá), apresentou o Scoap3, uma parceria entre repositórios, agências de fomento e instituições de pesquisa de 12 países lançada este ano e que subsidia o acesso a artigos de física de partículas publicados em periódicos fechados – modelo alternativo para driblar as restrições de grandes publicações. Já Leslie Chan, professor da Universidade de Toronto Scarborough (também no Canadá), mostrou o Bioline International, plataforma que reúne veículos de acesso livre de países em desenvolvimento e da qual é diretor, e destacou a ação da Open and Collaborative Science in Development Network (OCSDNet), que incentiva projetos colaborativos abertos em países em desenvolvimento.
Ferramentas livres
Outro ponto fervilhante do movimento pela ciência aberta é sua interlocução com a produção e apropriação de softwares e hardwares livres. “Essas alternativas permitem que as pessoas comecem a construir seus próprios equipamentos e possam fazer ciência em lugares onde ela não era acessível, além de permitir apropriações interessantes no ensino e na arte”, afirmou Denisa Kera, da Universidade Nacional de Singapura. “É uma forma de levar as ferramentas de produção para dar poder aos cidadãos em nações emergentes e também de incentivar as colaborações Sul-Sul.”
Kera apresentou um projeto próprio, o Biostrike, iniciativa colaborativa para criação conjunta de antibióticos que utiliza ferramentas de acesso aberto e é financiada via crowdfunding e doações. “As bactérias são tiradas do solo pelas empresas, mas as amostras de solo são como commons [de acesso gratuito].” Também recebeu destaque uma iniciativa semelhante, o projeto colaborativo Open Source Beehives, que utiliza sensores de código aberto para monitorar o comportamento das abelhas e poluentes, com dados geolocalizados e compartilhados em tempo real na plataforma Smartcitizen. Por fim, Kera também apresentou o Marblar, iniciativa que busca transformar patentes e invenções em produtos reais que melhorem a qualidade de vida, trabalhando de forma colaborativa.
No contexto nacional, Paulo Meirelles, pesquisador da Universidade de Brasília e do Centro de Competência em Software Livre da Universidade de São Paulo, falou sobre a pesquisa na área no Brasil. “Para uma ciência aberta, com dados abertos, vamos usar as ferramentas apropriadas, por meio de softwares livres”, defendeu. Seu grupo realizou uma revisão dos programas apresentados nos últimos 10 anos na seção de ‘ferramentas’ do Simpósio Brasileiro de Engenharia de Software: dos cerca de 150 projetos, apenas seis se encaixavam na definição de software livre – eram totalmente abertos e permitiam qualquer uso ou modificação, além de sua redistribuição irrestrita.
“Antes de falar de temas maiores, é preciso fazer um trabalho de formiguinha, mostrar aos estudantes como criar um projeto que seja realmente livre”, ponderou Meirelles. “Sugerimos na UnB que os alunos subissem seus trabalhos de conclusão de curso na internet de forma aberta, ao invés de entregar três cópias impressas, mas a adesão dos professores foi limitada; ainda é difícil convencer até nosso colega do lado que é bom deixar os trabalhos dos nossos alunos abertos.”
Pelas especificidades das pesquisas científicas, no entanto, o uso de softwares livres na ciência pode ter complicações: é preciso desenvolver ferramentas próprias, mas muitas alternativas criadas por cientistas de forma amadora, com base em alguma linguagem de computação que conheçam, não têm o suficiente para sequer serem consideradas softwares. Foi o que explicou Alex Viana, da organização não governamental canadense Software Carpentry, que há 15 anos ensina pesquisadores a utilizar ferramentas digitais para fazer ciência mais rápido e de forma aberta. Viana citou como exemplo um estudo sobre o impacto da dívida pública no crescimento econômico de vários países que ganhou destaque, mas acabou criticado por falhas nas planilhas em que baseou suas conclusões.
“A engenharia de software tem 50 anos, as melhores práticas já foram definidas para problemas comuns e é muito melhor seguir o caminho já definido do que ficar reinventando a roda”, explicou Viana. As formações da Software Carpentry ensinam, por exemplo, a utilizar linhas de comando e a realizar testes de software, que dão mais certeza aos resultados. As orientações estão disponíveis na internet para os interessados, que podem fazer o uso que quiserem delas.
Hardware livre
No campo dos hardwares livres, as interações com a ciência também são muitas e cada vez mais comuns. Um dos projetos destacados por Denisa Kera foi o trabalho da organização sem fins lucrativos Lifepatch em Singapura, que envolveu a produção de kits acessíveis de microscopia a partir de peças de câmeras fotográficas, videogames e materiais simples como madeira. “Os instrumentos foram utilizados, por exemplo, em oficinas com crianças, performances artísticas e atividades com comunidades locais”, contou. “Eles chegaram a ser utilizados, inclusive, na universidade, para o estudo das bactérias do solo vulcânico e do processo de fermentação do vinho.”
Para o uso em pesquisas mais avançadas, o físico Rafael Pezzi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, destacou uma questão importante: a dificuldade de licenciar o conhecimento de forma aberta. “Alguns projetos de hardware que desenvolvemos podem ser patenteados e, se alguém fizer isso, poderia impedir sua utilização; mas, se patenteamos pela universidade, seu uso também fica limitado”, lamentou. “Além disso, o reconhecimento acadêmico passa pela patente; então como receber o crédito e, ao mesmo tempo, permitir o uso?”
Um dos exemplos a serem seguidos, segundo Pezzi, é o Open Hardware (OHW), licença criada pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern). Denisa Kera citou a Defensive Patent License (DPL), novo mecanismo legal que será lançado em novembro e visa proteger patentes colaborativas e evitar que tecnologias abertas sejam retiradas do domínio público.
O brasileiro ressaltou que, embora essa área tenha sido impulsionada pelas impressoras 3D de código aberto, ainda é preciso avançar mais. “Para criar novos projetos e equipamentos open source, precisamos de toda uma bancada de código aberto de baixo custo”, avaliou. Seu grupo trabalha na criação de um desses itens: a fresadora ‘joão-de-barro’, cujo projeto estará aberto em breve, promete. “Ela será barata, robusta e fácil de montar, para estimular o crescimento de uma comunidade em torno dela como a que existe em torno das impressoras 3D.”
Derrubando ‘os muros’
Para além das fronteiras da comunidade científica, muitas iniciativas de ciência aberta têm buscado uma aproximação com a sociedade de forma prática. Um bom exemplo é o projeto desenvolvido por David Cavallo, pesquisador do MediaLab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), numa pequena comunidade da Tailândia e por meio do qual buscou aplicar e adaptar a tecnologia e a ciência às necessidades locais.
A região sofria com as questões climáticas e os agricultores viviam endividados, devido à falta ou ao excesso de chuvas, as escolas eram péssimas e os estudantes e seus familiares, desinteressados. O projeto ajudou os moradores a desenvolver suas próprias soluções para os problemas, ao promover o contato prático e a adaptação do conhecimento científico e tecnológico. “Processos de aprendizado e de prática de ciência abertos são vitais para a criação de sociedades mais sustentáveis e justas”, afirmou. “Eles podem não ter descoberto algo novo para o mundo, mas encontraram algo novo para eles, o que é crítico, e soluções melhores do que aquelas apresentadas pelas autoridades.”
O MediaLab é conhecido pelo projeto 'One laptop per child', iniciativa que desenvolve computadores de baixo custo para aplicações no ensino ao redor do mundo. “Usar um computador de baixo custo, aberto e resistente para modelar um cenário ensina toda a matemática que a escola joga, ensina a formular hipóteses, a tirar o conhecimento do campo da abstração e a adaptar a tecnologia às necessidades”, avaliou. Em parceria com a Universidade de São Paulo, o grupo de Cavallo desenvolve um projeto de robótica na periferia da metrópole brasileira a partir de sucata e que também busca formas de construir localmente o conhecimento.
Laboratório aberto
Uma experiência ainda mais radical, o Genspace, foi apresentada por uma de suas criadoras, Ellen Jorgensen. O projeto é uma espécie de laboratório comunitário aberto à participação de qualquer pessoa interessada em biologia molecular e sintética. “Tudo começou em 2009, quando soubemos de pessoas que criavam laboratórios em casa para produzir iogurtes verdes e coisas do tipo”, lembrou. “Pensamos, então: isso mostra que há muita gente interessada em ciência e posso ajudá-las, inclusive a não se matarem.”
Embora em áreas como a astronomia a participação de amadores seja natural, a ideia de deixá-los lidar com bactérias pode ser assustadora. “Mas é claro que nossa equipe treina os interessados para usar os equipamentos e garantir a biossegurança”, explicou. “No começo, lemos muitas coisas absurdas na imprensa, mas hoje é até mais assustador ver todo mundo querendo saber qual projeto faremos em seguida.”
Assista à palestra de Jorgensen no TED, ‘Biohacking, vc tb pode fazer’, que já foi vista por mais de meio milhão de pessoas
A proposta do Genspace não é fazer coisas necessariamente inovadoras, mas divertidas e interessantes – sem que o cientista precise decidir seu projeto baseado nos temas quentes que atraem financiamento. “Imagine dizer a um cientista que ele pode fazer o que quiser, desde que seja seguro; não precisa ser novo, dar lucro ou salvar o mundo; é fantástico”, vibrou Jorgensen. O projeto tem atraído, inclusive, diversos artistas, como Heather Dewey-Hagborg. Seu trabalho, Stranger vision, criou rostos de pessoas a partir do DNA que extraídos de objetos como um chiclete mascado. “O estudo do código genético já é importante na medicina e pode ganhar relevância, no futuro, até para nossa privacidade; imagine saber tudo a seu respeito só com um chiclete”, ponderou.
Para Jorgensen, esse é um movimento de vanguarda que tem na participação sua maior diferença em relação às tradicionais iniciativas de popularização da ciência. “Em geral o público tem acesso muito restrito a laboratórios, mesmo nas escolas, e aqui ele pode desenhar seu experimento, projetar seus equipamentos e criar coisas das quais não necessariamente sabem o resultado”, disse. “Quem sabe um dia não teremos muitos desses laboratórios comunitários pelo mundo? Isso pode revolucionar o estudo da biologia.”
Marcelo Garcia
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